A autoria do texto é atribuída a Miguel EstevesCardoso....
«Primeiro, as verdades.
O Norte é mais Português que Portugal.As minhotas são as raparigas mais bonitas do País.O Minho é a nossaprovíncia mais estragada e continua a ser a mais bela.As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram. (...)
Mais verdades.
No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Estas são as verdades do Norte de Portugal.
Mas há uma verdade maior.É que só o Norte existe. O Sul não existe. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos.Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos osportugueses juntos falam de Portugal inteiro.Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosseum segundo país. Não haja enganos.Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falamdo Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal.Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma deum e de outro que constitui Portugal.Mas o Norte é onde Portugal começa.Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, acorrer por ali abaixo.. É esta a verdade.Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. OAlentejo é especial mas ibérico, a Madeira éencantadora mas inglesa e os Açores são um caso àparte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem noCentro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanosnem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. Asilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de milmisturadas, Continente.No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganhacorpo. Está muito estragado, mas é um estragadoportuguês, semi-arrependido, como quem não quer acoisa. O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçuraagreste, a timidez insolente da mulher portuguesa.Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina,o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhosverdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde odia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos.Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãosnas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizemtudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem.As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm oar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, duranteas festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, sãoelas que decidem silenciosamente. O Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhostivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia queo orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava porencontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou oAlgarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro oNorte.
Depois percebi.Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Jánascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem,seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras aterra maior que é o "O Norte".Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueseshaviam de defender Portugal no mundo. Este sacrifíciocolectivo, em que cada um adia a sua pertençaparticular - o nome da sua terrinha - para poderpertencer a uma terra maior, é comovente.No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhoresdo que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas deViana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima.Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda émais bonita. O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quemsabe se é mais Minho ou Trás-os- Montes, se é litoralou interior, português ou galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas carase para aquelas casas, para as árvores, para os muros,ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céuem fogo, para adivinhar.O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome deterra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Nãoé só o nome do Porto. É a maneira que têm e dizer"Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda ahora, com a maior das naturalidades. Sem complexos esem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se fosse assim quechamassem uns pelos outros. Porque é que não é assimque nos chamamos todos?».
Miguel Esteves Cardoso
08 março, 2007
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