17 março, 2007

'' Iure et de Iure''

Caríssimos

Deixo-vos com um texto do Jornalista/Jurista Pedro Mexia, publicado na Revista Grande Reportagem do ido ano de 2004.

O texto será no mínimo polémico.Parece-me que tem uma visão bastante redutora da licenciatura (provavelmente não teve o previlégio de frequentar a mesma faculdade que alguns de nós...).

''Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na tesede doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas. Mas confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como dizer isto -debruça-se sobre a problemática da cessão dos créditos.Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei pormim teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de noventa do século passado. Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas einfindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de Direito.Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio. Mas agora, passado o período de nojo, aproveito para deixar aos meusleitores dois ou três avisos sobre o dito curso.Pois bem: trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezíveldas criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente dito: sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiraniassortidas e as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocarapenaso curso, aqules cinco penosos anos de colónia penal. Convém aliás explicar que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mascomo forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica deopressão, de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima. Não vou agora aqui sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível aprincípioe se tornou depois indiferente.Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meudescontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido. Estavacom sono. Escrevinhava coisas num caderno. E em cima do estrado, omonocórdico mestre dissertava sobre a «servidão de estilicídio». Eu explico: trata-se de garantir escoamento das águas quando um prédio vizinho não estáamais de cinco decímetros do outro. A minha vaga insatisfação com o cursotornou-se, nesse segundo, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não eracertamente estudar o escoamento de águas e a distância entre osprédios. Que se lixasse o estilicídio. Eu queria distância era do curso.Porque essa era a nossa faina. Engolíamos, como óleo de rícino, noções assimintragáveis durante dez infindáveis s emestres. Não apenas a acção dedespejo, o IRS ou a recorribilidade do acto administrativo, assuntosminimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituiçãoda Costa Rica. O inadimplemento culposo. A impugnação pauliana. A venda aretro. A ineptidão da petição inicial. As prescrições presuntivas. A substituição quase-pupilar. O fideicomisso. O anatocismo. A enfiteuse. Osvícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contratosinalagmático. O registo das sociedades em comandita. O benefício da excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interessedesmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em todos osseus nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os infindáveis casos entre o "senhor A" e o "senhor B", que vendiam um aooutro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma,deixavam violas de gamba em usufruto, e por aí em diante. Por vezes iam mais longe: o usufruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, oprocesso na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris?, perguntavam,sacanas, os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber. Por esta altura, todos nós queríamos mais era que o senhor A e o senhor B se quilhassem.Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei sto.Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto.Aguentei o prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinheide capa a capa catrapácios de setecentas páginas sobre a pensão dealimentos por causa disto. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam nisso.

Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais decentes.Como pianista num bordel.''

Abraço

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